segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Projeto “Narrativas Poéticas em videoarte desde América Latina” passa por Feira de Santana


Em parceria com a DiaboA4 Editora e o Museu de Arte Contemporânea, as soteropolitanas Karina Rabinovitz (poeta) e Silvana Rezende (videasta) trazem para Feira de Santana uma mostra do projeto que vêm desenvolvendo juntas aliando poesia e videoarte. A ideia é compartilhar todo o processo de investigação artística: a pesquisa, criação e realização audiovisual (videoarte) em países da América Latina e participação em Festivais e Mostras de Vídeos, passando pelo Uruguai, Argentina, Equador e Chile. Além disso, os videopoemas serão exibidos e, por fim, será promovido um debate sobre a presença da arte em nossas vidas, as formas e métodos de criação em videoarte, o pensamento latino-americano e a relação arte e cultura.
O projeto “Narrativas Poéticas em Videoarte desde América Latina” foi selecionado no Edital Setorial de Artes Visuais/2012, da Fundação Cultural, através da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia.

Karina Rabinovitz e Silvana Rezende – Foto: Cátia Milena/ Divulgação.
                          
Karina Rabinovitz: http://www.karinarabinovitz.blogspot.com.br/
Silvana Rezende: http://silvanarezende.wordpress.com/

25/11 a partir das 15hrs no Museu de Arte Contemporânea!
Aguardamos tod@s vocês!

http://goo.gl/F7CiLF

domingo, 9 de novembro de 2014

Torquato Neto

 

 

Let's Play That

quando eu nasci
um anjo louco muito louco
veio ler a minha mão
não era um anjo barroco
era um anjo muito louco, torto
com asas de avião
eis que esse anjo me disse
apertando minha mão
com um sorriso entre dentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
let's play that

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Arthur Rimbaud

Minha boêmia
(Fantasia)
Lá ia eu, de mãos nos bolsos descosidos;
Meu paletó também tornava-se ideal;
Sob o céu, Musa, eu fui teu súdito leal,
Puxa vida! a sonhar amores destemidos!
O meu único par de calças tinha furos.
– Pequeno Polegar do sonho ao meu redor
Rimas espalho. Albergo-me à Ursa Maior.
– Os meus astros no céu rangem frêmitos puros.
Sentado, eu os ouvia, à beira do caminho,
Nas noites de setembro, onde senti qual vinho
O orvalho a rorejar-me a fronte em comoção;
Onde, rimando em meio a imensidões fantásticas,
Eu tomava, qual lira, as botinas elásticas
E tangia um dos pés junto ao meu coração!
Poema do livro “Poesia Completa”, de Arthur Rimbaud (tradução de Ivo Barroso), editora Topbooks.

sábado, 11 de outubro de 2014

Aleister Crowley - poema



Hino a Pã
Tradução de Fernando Pessoa - Revista Presença n° 33, de Julho/Outubro de 1933

Vibra do cio sutil da luz,
Meu homem e afã
Vem turbulento da noite a flux
De Pã! Io Pã!
Ioô Pã! Io Pã! Do mar de além
Vem da Sicília e da Arcádia vem!
Vem como Baco, com fauno e fera
E ninfa e sátiro à tua beira,
Num asno lácteo, do mar sem fim,
A mim, a mim!
Vem com Apolo, nupcial na brisa
(Pegureira e pitonisa),
Vem com Artêmis, leve e estranha,
E a coxa branca, Deus lindo, banha
Ao luar do bosque, em marmóreo monte,
Manhã malhada da àmbrea fonte!
Mergulha o roxo da prece ardente
No ádito rubro, no laço quente,
A alma que aterra em olhos de azul
O ver errar teu capricho exul
No bosque enredo, nos nás que espalma
A árvore viva que é espírito e alma
E corpo e mente - do mar sem fim
(Io Pã! Io Pã!),
Diabo ou deus, vem a mim, a mim!
Meu homem e afã!
Vem com trombeta estridente e fina
Pela colina!
Vem com tambor a rufar à beira
Da primavera!
Com frautas e avenas vem sem conto!
Não estou eu pronto?
Eu, que espero e me estorço e luto
Com ar sem ramos onde não nutro
Meu corpo, lasso do abraço em vão,
Áspide aguda, forte leão -
Vem, está fazia
Minha carne, fria
Do cio sozinho da demonia.
À espada corta o que ata e dói,
Ó Tudo-Cria, Tudo-Destrói!
Dá-me o sinal do Olho Aberto,
E da coxa áspera o toque erecto,
Ó Pã! Io Pã!
Io Pã! Io Pã Pã! Pã Pã! Pã.,
Sou homem e afã:
Faze o teu querer sem vontade vã,
Deus grande! Meu Pã!
Io Pã! Io Pã! Despertei na dobra
Do aperto da cobra.
A águia rasga com garra e fauce;
Os deuses vão-se;
As feras vêm. Io Pã! A matado,
Vou no corno levado
Do Unicornado.
Sou Pã! Io Pã! Io Pã Pã! Pã!
Sou teu, teu homem e teu afã,
Cabra das tuas, ouro, deus, clara
Carne em teu osso, flor na tua vara.
Com patas de aço os rochedos roço
De solstício severo a equinócio.
E raivo, e rasgo, e roussando fremo,
Sempiterno, mundo sem termo,
Homem, homúnculo, ménade, afã,
Na força de Pã.
Io Pã! Io Pã Pã! Pã!

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

PIVA




A Piedade

Eu urrava nos poliedros da Justiça meu momento
abatido na extrema paliçada
os professores falavam da vontade de dominar e da
luta pela vida
as senhoras católicas são piedosas
os comunistas são piedosos
os comerciantes são piedosos
só eu não sou piedoso
se eu fosse piedoso meu sexo seria dócil e só se ergueria
aos sábados à noite
eu seria um bom filho meus colegas me chamariam
cu-de-ferro e me fariam perguntas: por que navio
bóia? por que prego afunda?
eu deixaria proliferar uma úlcera e admiraria as
estátuas de fortes dentaduras
iria a bailes onde eu não poderia levar meus amigos
pederastas ou barbudos
eu me universalizaria no senso comum e eles diriam
que tenho todas as virtudes
eu não sou piedoso
eu nunca poderei ser piedoso
meus olhos retinem e tingem-se de verde
Os arranha-céus de carniça se decompõem nos
pavimentos
os adolescentes nas escolas bufam como cadelas
asfixiadas
arcanjos de enxofre bombardeiam o horizonte através
dos meus sonhos

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Hart Crane



ESQUECIMENTO
O esquecimento é uma canção
Errante e solta sem compasso.
O esquecimento é um pássaro de asas avindas
Abertas e paradas
Um pássaro encostado ao vento sem fadiga.
O esquecimento é a chuva à noite,
Ou uma casa velha na floresta ou uma criança.
O esquecimento é branco branco de árvore abatida.
E pode pôr a Sibila a profetizar pasmada,
Ou enterrar os deuses.
Lembro muito esquecimento.

- Hart Crane (tradução Sephi Alter)

domingo, 15 de junho de 2014

Antonio Brasileiro - Das coisas memoráveis



DAS COISAS MEMORÁVEIS

Um dia o mundo inteiro vai ser memória.
Tudo será memória.
As pessoas que vemos transitar naquela rua,
as gentis ou as sábias, ou as más, todas,
        todas.
E o mendigo que passa sem o cão,
o ginasta, a mãe, o bobo, o cético, a turista.
Deus, inclusive, regendo o fim das coisas
memoráveis, também será memória. Deus
e os pardais.
E os grandes esqueletos do Museu Britânico.
Todo sofrimento será memória. Eu, sentado aqui,
serei só estes versos que dizem haver um eu
        sentado aqui.


                                                  31/05/1999

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Fernando Pessoa - Poema em linha reta



Poema em linha reta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado
[sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe — todos eles príncipes — na vida…
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos — mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Garcia Lorca



Árvores 

  árvores!
terão sido flechas
caídas do azul?
que terríveis guerreiros as lançaram?
terão sido as estrelas?
vossas músicas vêm da alma dos pássaros,
dos olhos de Deus,
da paixão perfeita.
árvores!
conhecerão vossas raízes toscas
meu coração em terra?

Lorca (1919)

terça-feira, 3 de junho de 2014

Sutra do girassol - Allen Ginsberg



Sutra do girassol[1]

Caminhei pela beira do cais de bananas e latarias e me sentei à sombra enorme de uma locomotiva da Southern Pacific para olhar o sol que se punha entre as colinas de casas como caixotes e chorar.
Jack Kerouac sentou-se a meu lado sobre um poste de ferro quebrado e enferrujado, companheiro, pensávamos os mesmos pensamentos da alma, chapados e de olhos tristes, cercados pelas retorcidas raízes de aço das árvores da maquinaria,
A água oleosa do rio refletia o rubro céu, o sol naufragava nos cumes dos últimos morros de Frisco,[2] nenhum peixe nessas águas, nenhum ermitão nessas montanhas, só nós dois com nossos olhos embaçados e ressaca de velhos vagabundos à beira-rio, malandros cansados.
Olha o Girassol, disse ele, lá estava a sombra cinzenta e morta contra o céu, do tamanho de um homem, encostada ressecada no topo do montão de serragem velha–
– Ergui-me encantado – meu primeiro girassol, recordações de Blake – minhas visões – Harlem
e infernos dos rios do Leste, pontes com o clangor dos Sanduíches Gordurosos de Joe,[3] carrinhos de bebês mortos, negros pneus carecas largados lá, o poema do cais à beira-rio, preservativos & penicos, facas nada inoxidáveis de aço, só o lixo úmido e os artefatos de afiados gumes passando para o passado –
e o Girassol cinzento reclinado contra o crepúsculo, desoladamente rachado e ressecado pela fuligem e a fumaça e o pó de velhas locomotivas em seu olho –
corola de turvas pontas retorcidas e partidas como uma coroa arrebentada, sementes roladas do seu rosto, boca em breve desdentada ao ar ensolarado, raios de sol se apagando na cabeça cabeluda como uma teia de fios secos,
folhas tesas como ramos presos ao tronco, gesto enraizado na serragem, pedaços de estuque caídos dos negros galhos, mosca morta na orelha,
Ímpia coisa velha destroçada, você, meu girassol, Ó minha alma, como então te amei!
A fuligem não era uma fuligem humana porém morte e locomotivas humanas,
toda essa roupagem de pó, esse véu de pele escurecida da estrada, essa fumaça da face, essa pálpebra de negra miséria, essa fuliginosa mão ou falo ou protuberância de algo artificial pior que a própria sujeira – industrial – moderna – toda a civilização maculando sua louca coroa dourada –
e todos esses torvos pensamentos de morte e olhos empoeirados do desamor e tocos e raízes retorcidas embaixo, dentro do seu montão de areia e serragem, notas falsas de borracha de dólar, pele de maquinaria, as entranhas e vísceras do carro que tosse e chora, as latas vazias e abandonadas com suas enferrujadas línguas de fora, o que mais poderia eu nomear, a cinza queimada de algum cigarro do caralho, bocetas dos carrinhos e os túrgidos seios dos carros, bundas gastas dos bancos e esfíncteres dos dínamos – todo esse
emaranhado nas suas raízes mumificadas – e você aí postado a minha frente ao sol poente, toda a sua glória em sua forma!
Beleza perfeita de um girassol! excelente existência perfeita de um adorável girassol! doce olho natural voltado para a lua nova “hip”, desperto vivaz e excitado respirando a dourada brisa da luz do sol poente!
Quantas moscas zumbiram a seu redor ignorando sua fuligem, enquanto você amaldiçoava os céus da ferrovia em sua alma em flor?
Pobre flor morta? Quando foi que você esqueceu que era uma flor? quando foi que você olhou para sua pele e resolveu que era uma suja e impotente locomotiva velha? o espectro da locomotiva? a sombra e vulto de uma outrora poderosa locomotiva americana louca?
Você nunca foi uma locomotiva, Girassol, você é um girassol!
E você, Locomotiva, você é uma locomotiva, não se esqueça!
E assim agarrei o duro esqueleto do girassol e o finquei a meu lado como um cetro,
e faço meu sermão para minha alma, e também para a alma de Jack e para quem mais quiser me escutar.
– Nós não somos nossa pele de sujeira, nós não somos nossa horrorosa locomotiva sem imagem empoeirada e arrebentada, por dentro somos todos girassóis maravilhosos, nós somos abençoados por nosso próprio sêmen & dourados corpos peludos e nus da realização crescendo dentro dos loucos girassóis negros e formais ao pôr do sol, espreitados por nossos olhos à sombra da louca locomotiva do cais na visão do poente de latadas e colinas de Frisco sentados ao anoitecer.

Tradução: Claudio Willer
Berkeley, 1955

[1] SUTRA DO GIRASSOL – Sutra são textos védicos, de doutrina filosófico-religiosa. O girassol é uma flor-símbolo para Ginsberg, que, na experiência místico-visionária de 1948 em seu apartamento no Harlem, lia o poema Ha! Sun-Flower dos Songs of Experience, quando ouviu a voz do próprio Blake recitando o poema.
[2] Frisco – San Francisco. Os moradores desta cidade não apreciam essa designação.
[3] Sanduíches Gordurosos de Joe – Joe’s é outra cadeia de lanchonetes.

sábado, 31 de maio de 2014

Walt Whitman - Cidade de Orgias


Cidade de Orgias

Cidade de orgias, passarelas e gozos!
Cidade em quem vivi e cantei em seu meio, que um dia farei ilustre,
Não os seus pajens – não são seus tableaux inconstantes, seus espetáculos que me compensam;
Não as suas fileiras intermináveis de casas – não os navios nos cais,
Não suas procissões nas ruas, nem suas claras janelas, com suas mercadorias;
Nem dialogar com pessoas instruídas, ou trazer a minha parte na festa ou banquete;
Não isso – mas, enquanto passo, Ó, Manhattan! seu relâmpago frequente e ligeiro de olhos que me oferecem amor,
Que oferecem resposta ao meu próprio – estes me compensam;
Amantes, contínuos amantes, apenas, me compensam.

sexta-feira, 9 de maio de 2014

65 anos de Lula Côrtes!


Haviam as estradas no meu pensamento
Que não me levavam pra nada
E o tempo corria e ia dizendo
Com sua boca calada
Que só a tristeza, só a solidão
Impedem aos homens de continuar
Que assim como o sol, por todo verão
Os homens deviam brilhar

Por entre as estrelas, nas noites escuras
Ou pelas alturas, no inimaginável
E por ser assim brilhar e crescer
Pra não viver do passado
Porque a vida não é como essas estradas
Do meu pensamento, que não levam a nada
A vida não é como essas estradas
Do meu pensamento, que não levam a nada
A vida não é como essas estradas do meu pensamento

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Jorge de Lima, panfletário do caos





Foi no dia 31 de dezembro de 1961 que te compreendi Jorge de Lima
enquanto eu caminhava pelas praças agitadas pela melancolia presente
na minha memória devorada pelo azul
eu soube decifrar os teus jogos noturnos
indisfarçável entre as flores
uníssonos em tua cabeça de prata e plantas ampliadas
como teus olhos crescem na paisagem Jorge de Lima e como tua boca
palpita nos bulevares oxidados pela névoa
uma constelação de cinza esboroa-se na contemplação inconsútil
de tua túnica
e um milhão de vaga-lumes trazendo estranhas tatuagens no ventre
se despedaçam contra os ninhos da Eternidade
é neste momento de fermento e agonia que te invoco grande alucinado
querido e estranho professor do Caos sabendo que teu nome deve
estar como um talismã nos lábios de todos os meninos


Poema de Roberto Piva

quarta-feira, 16 de abril de 2014

MANIFESTO DADAÍSTA de TRISTAN TZARA - 1918

tradução do francês de Ivo Korytowski
A magia de uma palavra —
DADÁ — que levou os
jornalistas às portas
de um mundo inesperado, para nós
não tem a menor importância.

Para lançar um manifesto é preciso querer: A.B.C., fulminar contra 1, 2, 3, se enervar e aguçar suas asas para conquistar e difundir pequenas e grandes a, b, c, assinar, gritar, jurar, organizar a prosa sob uma forma de evidência absoluta, irrefutável, provar seu non-plus-ultra e sustentar que a novidade se assemelha à vida como a última aparição de uma prostituta prova a essência de Deus. Sua existência já foi provada pelo acordeão, a paisagem e palavras doces.■ Impor seu A.B.C. é uma coisa natural — portanto lamentável. Todo mundo o faz sob uma forma de cristalblefemadona, sistema monetário, produto farmacêutico, perna nua convidando à primavera ardente e estéril. O amor à novidade é a cruz simpática, prova de uma atitude ingênua de não-estou-nem-aí, sinal sem causa, passageiro, positivo. Mas essa necessidade está também antiquada. Ao darmos à arte o impulso da suprema simplicidade — novidade — somos humanos e fiéis ao divertimento, impulsivos, vibrantes para crucificar o tédio. Na encruzilhada das luzes, alertas, atentos, espreitando os anos, dentro da floresta.■



Escrevo um manifesto e nada quero, digo porém certas coisas e sou em princípio contra os manifestos, como sou também contra os princípios (decilitros para o valor moral de toda frase — comodidade demais; a aproximação foi inventada pelos impressionistas). ■ Escrevo este manifesto para mostrar que é possível realizar ações contrárias ao mesmo tempo, em um só fôlego fresco; sou contra a ação; quanto à contínua contradição, quanto à afirmação também, não sou a favor nem contra e não me explico porque detesto o bom senso.

DADÁ — eis uma palavra que oferece as ideias à caçada; cada burguês é um pequeno dramaturgo, inventa assuntos diferentes; em vez de colocar os personagens adequados no nível de sua própria inteligência, qual crisálidas em cadeiras, procura as causas ou os propósitos (seguindo o método psicanalítico que ele pratica) a fim de reforçar sua trama, uma história que fala e se define. ■ Cada espectador é um enredador, se tenta explicar uma palavra (conhecer!). Do refúgio acolchoado das complicações serpentinas, é preciso manipular seus instintos. Daí as infelicidades da vida conjugal.

Explicação: Divertimento dos barrigas-vermelhas nos moinhos de crânios vazios.

DADÁ NÃO SIGNIFICA NADA



Se o consideramos fútil e se não queremos perder nosso tempo com uma palavra que não significa nada... O primeiro pensamento que vem a essas cabeças é de ordem bacteriológica: encontrar sua origem etimológica, histórica ou psicológica, pelo menos. Vemos nos jornais que os negros Krou chamam a cauda de uma vaca sagrada: DADÁ. O cubo, e a mãe, em uma certa região da Itália: DADÁ. Um cavalo de madeira, a ama de leite, uma dupla afirmação em russo e em romeno: DADÁ. Jornalistas cultos ali vêem uma arte para os bebês, outros santos Jesuschamandoascriancinhas do dia, a volta a um primitivismo árido e ruidoso, ruidoso e monótono. Não se constrói sobre uma palavra a sensibilidade; toda construção converge para a perfeição que entedia, idéia estagnada de um pântano dourado, produto humano relativo. A obra de arte não deve ser a beleza em si mesma, porque ela está morta; nem alegre nem triste, nem clara nem escura, deleitar ou maltratar as individualidades servindo-lhes os doces de auréolas santas ou os suores de uma corrida ondulante pela atmosfera. Uma obra de arte jamais é bela, por decreto, objetivamente, para todos. A crítica é portanto inútil, ela só existe subjetivamente, para cada um, e sem o menor caráter de generalidade. Acredita-se ter encontrado a base psíquica comum a toda a humanidade? A tentativa de Jesus e a Bíblia ocultam sob suas asas amplas e benevolentes: a merda, os animais, os dias.



Como se pode querer ordenar o caos que constitui essa variação infinita e informe: o homem? O princípio “ama ao teu próximo” é uma hipocrisia. “Conhece a ti mesmo” é uma utopia, mas mais aceitável pois ela contém em si a maldade. Nada de piedade. Resta-nos, após a carnificina, a esperança de uma humanidade purificada. Falo sempre de mim, já que não quero convencer, não tenho o direito de arrastar os outros no meu rio, não obrigo ninguém a me seguir, e todo mundo faz sua arte à sua maneira, se conhece a alegria que sobe qual flecha à esfera astral, ou a que desce às minas floridas de cadáveres e espasmos férteis. Estalactites: procurá-las por toda parte, nos presépios ampliados pela dor, olhos brancos como as lebres de anjos. Assim nasceu DADÁ de uma necessidade de independência, de uma desconfiança em relação à comunidade. Aqueles que pertencem a nós preservam a liberdade. Não reconhecemos nenhuma teoria. Já estamos fartos das academias cubistas e futuristas: laboratórios de idéias formais. Pratica-se a arte para ganhar dinheiro e adular os gentis burgueses? As rimas soam a assonância das moedas, e a inflexão desliza ao longo da linha do ventre de perfil. Todos os grupos de artistas foram parar nesse banco [no sentido de instituição bancária — N. do T.], cavalgando diversos cometas. A porta aberta às possibilidades de se chafurdar nas almofadas e na comida.

Aqui lançamos a âncora à terra fértil.



Aqui temos o direito de proclamar, pois experimentamos os calafrios e o despertar. Espectros ébrios de energia, cravamos o tridente na carne indiferente. Somos jorros de maldições em abundância tropical de vegetações vertiginosas, resina e chuva é nosso suor, nós sangramos e ardemos de sede, nosso sangue é vigor.

O cubismo nasceu da simples forma de olhar o objeto: Cézanne pintou uma taça 20 centímetros mais baixa que seus olhos, os cubistas a vêem do alto, outros complicam a aparência cortando uma seção perpendicular e dispondo-a prudentemente do lado. (Não esqueço os criadores, nem as grandes razões da matéria que eles tornaram definitivas.) O futurista vê a mesma taça em movimento, uma sucessão de objetos um ao lado do outro, ornamentados maliciosamente de algumas linhas de guia. Isto não impede que a tela seja uma boa ou má pintura destinada ao investimento de capitais intelectuais. O pintor novo cria um mundo, cujos elementos também são os meios, uma obra sóbria, definida e irrefutável. O artista novo protesta: ele não pinta mais (reprodução simbólica e ilusionista), mas cria diretamente em pedra, madeira, ferro, estanho, rochas, ou estruturas móveis que podem ser viradas de todos os lados pelo vento límpido da sensação momentânea.■

Toda obra pictórica ou plástica é inútil, ainda que seja um monstro que mete medo aos espíritos servis, e não adocicada para ornar os refeitórios dos animais em trajes humanos, ilustrações desta triste fábula da humanidade. — Um quadro é a arte de fazer duas linhas geometricamente paralelas se encontrarem em uma tela, diante de nossos olhos, na realidade de um mundo transfigurado segundo as novas condições e possibilidades. Esse mundo não é especificado nem definido na obra; ele pertence, em suas inúmeras variações, ao espectador. Para seu criador, ele é sem causa e sem teoria. Ordem = desordem; eu = não eu; afirmação = negação: irradiações supremas de uma arte absoluta. Absoluta na pureza do caos cósmico e ordenado, eterna no glóbulo-segundo sem duração, sem respiração, sem luz, sem controle. Adoro uma obra antiga por sua novidade. Ela é puro contraste que nos liga ao passado. Os escritores que pregam a moral e discutem ou melhoram a base psicológica possuem, além de um desejo secreto de ganhar, um conhecimento ridículo da vida, que eles classificaram, repartiram, canalizaram; eles estão determinados a ver as categorias dançar enquanto marcam o compasso. Seus leitores zombam e continuam: pra quê?



Existe uma literatura que não atinge as massas vorazes. Obra de criadores, produto de uma verdadeira necessidade do autor, e para ele. Consciência de um supremo egoísmo, ou a madeira se estiolando. ■ Cada página deve explodir, seja pela seriedade profunda e pesada, o turbilhão, a vertigem, o novo, o eterno, pelo absurdo desconcertante, pelo entusiasmo dos princípios ou pela forma como está impressa. Eis um mundo vacilante que foge, noivo dos guizos da escala infernal, eis do outro lado: os homens novos. Rudes, saltantes, cavalgantes de soluços. Eis um mundo mutilado e os medicastros literários precisando de aperfeiçoamento.

Eu lhes asseguro: não existe começo e nós não trememos, nós não somos sentimentais. Nós rasgamos, qual vento furioso, a roupa branca das nuvens e das preces, e preparamos o grande espetáculo do desastre, o incêndio, a decomposição. Preparemos a supressão do luto e substituamos as lágrimas por sereias estendidas de um continente ao outro. Pavilhões [no sentido do tubo de instrumento de sopro — N. do T.] de alegria intensa e viúvos da tristeza venenosa. ■ DADÁ é o sinal da abstração; a propaganda e os negócios são também elementos poéticos.

Eu destruo as gavetas do cérebro e aquelas da organização social: desmoralizar por toda parte e jogar a mão do céu no inferno, os olhos do inferno no céu, restabelecer a roda fecunda de um circo individual nos poderes da realidade, e a fantasia de cada indivíduo.

A questão é filosófica: de que ângulo começar a olhar a vida, deus, a idéia, ou seja lá o que for. Tudo que se olha é falso. Não considero o resultado relativo mais importante que escolher entre doces e cerejas na sobremesa. A maneira de olhar rápido o outro lado de uma coisa, para impor indiretamente sua opinião, se chama dialética, ou seja, decidir no cara-ou-coroa sob uma aparência de seriedade. Se eu grito:



Ideal, ideal, ideal
Conhecimento, conhecimento, conhecimento
Bum-bum, Bum-bum, Bum-bum

registrei com precisão o progresso, a lei, a moral e todas as outras belas qualidades que diversas pessoas bem inteligentes discutiram em tantos livros, para enfim dizer que, mesmo assim, cada um dançou segundo seu bum-bum pessoal, e que ele tem razão por seu bum-bum: satisfação da curiosidade doentia; repique de sinos privado por necessidades inexplicáveis; banho; dificuldades pecuniárias; estômago com repercussão sobre a vida; autoridade da batuta mística formulada como a peça final de uma orquestra fantasma de arcos mudos, lubrificados por filtros à base de amoníaco animal. Com o monóculo azul de um anjo eles desenterraram seu interior por vinte centavos de reconhecimento unânime. ■ Se todos têm razão e se todas as pílulas não passam de Pink, tentemos uma vez não ter razão. ■ As pessoas acreditam que podem explicar racionalmente, pelo pensamento, o que escrevem. Mas isto é bem relativo. A psicanálise é uma doença perigosa, amortece os pendores anti-reais do homem e sistematiza a burguesia. Não existe Verdade derradeira. A dialética é uma máquina divertida que nos conduz (de forma banal) a opiniões que teríamos tido de qualquer modo. As pessoas realmente acreditam que, pela sutileza minuciosa da lógica, demonstraram a verdade e estabeleceram a exatidão de suas opiniões? A lógica comprimida pelos sentidos é uma doença orgânica. Os filósofos adoram acrescentar a esse elemento: o poder da observação. Mas justamente esta magnífica qualidade do espírito é a prova de sua impotência. As pessoas observam, olham as coisas de um ou vários pontos de vista, escolhem-nas dentre as milhões que existem. A experiência é também um resultado do acaso e de habilidades individuais. ■ A ciência me revolta do momento em que se torna um sistema especulativo e perde seu caráter utilitário — tão inútil — mas pelo menos individual. Odeio a objetividade viscosa e a harmonia, essa ciência que considera que tudo está em ordem. Continuem, minhas crianças, humanidade... A ciência diz que somos servos da natureza: tudo está em ordem, façam amor tanto quanto a guerra. Continuem, minhas crianças, humanidade, burgueses gentis e jornalistas virgens... ■ Sou contra os sistemas, o sistema mais aceitável é aquele de não ter por princípio nenhum. ■ Completar-se, aperfeiçoar-se em sua própria pequenez até preencher o vaso de seu eu, a coragem de combater a favor e contra o pensamento, mistério do pão arremesso súbito de uma hélice infernal em lírios econômicos:

A ESPONTANEIDADE DADAÍSTA

Chamo de atitude de não-estou-nem-aí quando cada um cuida de sua própria vida, ao mesmo tempo em que sabe respeitar as outras individualidades, e até defender-se, o two-step [tipo de dança de salão — N. do T.] tornando-se hino nacional, bricabraque, T.S.F. telefone sem fio transmitindo fugas de Bach, anúncios luminosos e cartazes para os bordéis, o órgão transmitindo cravos para Deus, tudo isto ao mesmo tempo, e realmente substituindo a fotografia e o catecismo unilateral.

A simplicidade ativa.



A incapacidade de distinguir entre os graus de clareza: lamber a penumbra e flutuar dentro da grande boca repleta de mel e excremento. Medida pela escala da Eternidade, toda ação é vã — (se permitíssemos ao pensamento uma aventura cujo resultado seria infinitamente grotesco — dado importante para o conhecimento da fraqueza humana). Mas se a vida é uma farsa infeliz, sem meta nem parto inicial, e por acreditarmos que devemos, como crisântemos lavados, fazer o melhor da situação, proclamamos como a base única do entendimento: a arte. Ela não tem a importância que nós, escolados no espírito, lhe prodigalizamos por muitos séculos. A arte não prejudica ninguém, e aqueles capazes de se interessar por ela recebem carinhos e uma bela chance de povoar o país de sua conversação. A arte é uma coisa privada, o artista a faz para si; uma obra compreensível é o produto de um jornalista, e porque neste momento me agrada misturar este monstro nas pinturas a óleo: um tubo de papel imitando o metal que se pressiona para extrair automaticamente ódio, covardia, vilania. O artista, o poeta se regozija no veneno dessa massa condensada em um chefe de seção dessa indústria, ele fica feliz ao ser insultado: prova de sua imutabilidade. O autor, o artista elogiado pelos jornais constata que sua obra foi compreendida: revestimento miserável de um sobretudo de utilidade pública; farrapos que cobrem a brutalidade, mijo contribuindo para o calor de um animal que incuba os baixos instintos. Carne flácida e insípida se multiplicando com a ajuda dos micróbios tipográficos.

Nós rejeitamos a inclinação chorona em nós. Cada filtração dessa natureza é diarréia macerada. Encorajar essa arte significa digeri-la. Precisamos de obras fortes, diretas, precisas e para sempre incompreendidas. A lógica é uma complicação. A lógica é sempre falsa. Ela puxa os fios das noções e palavras exteriormente formais para alvos e centros ilusórios. Suas cadeias matam, miriápode enorme asfixiando a independência. Casada com a lógica, a arte viveria em incesto, engolindo sua própria cauda, que continua pertencendo ao seu corpo, fornicando consigo mesma, e o temperamento se tornaria um pesadelo feito de protestantismo, um monumento, uma massa de intestinos cinzentos e pesados.

Mas a flexibilidade, o entusiasmo e até a alegria da injustiça, aquela pequena verdade que praticamos inocentes e que nos torna belos: nós somos delgados e nossos dedos são maleáveis e deslizam como os ramos dessa planta insinuante e quase líquida; essa injustiça define a nossa alma, dizem os cínicos. Isto também é um ponto de vista, mas nem todas as flores são santas, felizmente, e o que há de divino em nós é o despertar da ação anti-humana. Trata-se aqui de uma flor de papel para a casa de botão de cavaleiros que freqüentam o baile da vida mascarada, a cozinha da graça, brancas primas [em francês, cozinha (cuisine) e prima (cousine) soam quase iguais — N. do T.] flexíveis ou gordas. Eles traficam com aquilo que selecionamos. Contradição e unidade de pólos opostos ao mesmo tempo podem ser verdade. Caso estejamos absolutamente determinados a pronunciar essa banalidade, apêndice de uma moralidade libidinosa, malcheirosa. A moral atrofia, como todo flagelo produzido pela inteligência. O controle da moral e da lógica nos infligiram a impassibilidade diante dos agentes da polícia — causa da escravidão —, ratos pútridos com os quais os burgueses se empanturraram, e que infectaram os únicos corredores de vidro claros e limpos que restaram abertos aos artistas.

Que cada homem grite: há um grande trabalho destrutivo, negativo, por realizar. Varrer, limpar. A limpeza do indivíduo se afirma após o estado de loucura, de loucura agressiva, completa, de um mundo deixado nas mãos de bandidos que demolem e destroem os séculos. Sem propósito nem plano, sem organização: a loucura indomável, a decomposição. Os fortes pela palavra ou pela força sobrevivem, porque são rápidos na defesa; a agilidade dos membros e dos sentimentos arde sob seus flancos facetados.

A moral deu origem à caridade e piedade, duas bolas de sebo que cresceram como elefantes, planetas, e que as pessoas chamam de boas. Elas não têm nada da bondade. A bondade é lúcida, clara e resoluta, impiedosa para com o compromisso e a política. A moralidade infunde chocolate dentro das veias de todos os homens. Essa tarefa não é ordenada por uma força sobrenatural, mas pelo truste dos mercadores de ideias e açambarcadores universitários. Sentimentalismo: vendo um grupo de homens que discutiam e se enfadavam, eles inventaram o calendário e o remédio sabedoria. Colando rótulos, a batalha dos filósofos se desencadeou (mercantilismo, balanço, medidas meticulosas e mesquinhas), e compreendeu-se mais uma vez que a piedade é um sentimento, como a diarréia em relação ao desgosto que mina a saúde, a tarefa imunda das carniças de comprometer o sol.

Eu proclamo a oposição de todas as faculdades cósmicas a essa blenorragia de um sol pútrido saído das usinas do pensamento filosófico, a luta encarniçada, com todos os meios da

AVERSÃO DADAÍSTA

Todo produto da aversão suscetível de se tornar uma negação da família é dadá; protesto com toda a sua força em ação destrutiva: DADÁ; conhecimento de todos os meios rejeitados até agora pelo sexo pudico do compromisso cômodo e da polidez: DADÁ; abolição da lógica, dança dos incapazes de criação: DADÁ; de toda hierarquia e equação social estabelecidas pelos valores por nossos criados: DADÁ; cada objeto, todos os objetos, os sentimentos e as obscuridades, as aparições e o choque preciso de linhas paralelas, são meios para o combate: DADÁ; abolição da memória: DADÁ; abolição da arqueologia: DADÁ; abolição dos profetas: DADÁ; abolição do futuro: DADÁ; crença absoluta indiscutível em cada deus produto imediato da espontaneidade: DADÁ; salto elegante e sem preconceito de uma harmonia para outra esfera; trajetória de uma palavra atirada como um disco sonoro grito; respeitar todas as individualidades na sua loucura do momento: séria, temerosa, tímida, ardente, vigorosa, decidida ou entusiasmada; despojar sua igreja de todos os acessórios inúteis e pesados; cuspir como uma cascata luminosa o pensamento desagradável ou amoroso, ou acalentá-lo — com a viva satisfação de que tudo é igual — com a mesma intensidade na moita, livre de insetos para o sangue bem-nascido, e dourado com corpos de arcanjos, com sua própria alma. Liberdade: DADÁ DADÁ DADÁ, alarido de dores crispadas, entrelaçamento dos contrários e de todas as contradições, dos grotescos, das inconseqüências: A VIDA.

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Charles Baudelaire - O albatroz

 

 

"L'albatros" / O albatroz: tradução de Guilherme de Almeida



O albatroz

Às vezes, por prazer, os homens de equipagem
Pegam um albatroz, enorme ave marinha,
Que segue, companheiro indolente de viagem,
O navio que sobre os abismos caminha.

Mal o põem no convés por sobre as pranchas rasas,
Esse senhor do azul, sem jeito e envergonhado,
Deixa doridamente as grandes e alvas asas
Como remos cair e arrastar-se a seu lado.

Que sem graça é o viajor alado sem seu nimbo!
Ave tão bela, como está cômica e feia!
Um o irrita chegando ao seu bico em cachimbo,
Outro põe-se a imitar o enfermo que coxeia!

O poeta é semelhante ao príncipe da altura
Que busca a tempestade e ri da flecha no ar;
Exilado no chão, em meio à corja impura,
A asa de gigante impedem-no de andar.

sexta-feira, 4 de abril de 2014

Conde de Lautréamont - Fragmentos



"Eu, como os cães, sinto a necessidade do infinito...Não posso, não posso satisfazer essa necessidade! Sou filho do homem e da mulher, ao que me dizem. Isso me espanta...acreditava ser mais! De resto, que me importa de onde venho? Se dependesse da minha vontade, teria preferido ser antes o filho da fêmea do tubarão, cuja fome é amiga das tempestades, e do tigre, cuja crueldade é reconhecida: eu não seria tão mau”. 

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" Queira o céu que o leitor, tornado audaz e momentaneamente feroz à semelhança do que lê, encontre, sem se desorientar, o seu caminho abrupto e selvagem através dos lodaçais desolados destas páginas sombrias e cheias de veneno; pois que, a não ser que utilize na sua leitura uma lógica rigorosa e uma tensão de espírito pelo menos igual à sua desconfiança, as emanações mortais deste livro irão embeber-lhe a alma, como a água ao açúcar. Não convém que toda a gente leia as páginas que se seguem; só alguns hão-de saborear sem perigo este fruto amargo. Por consequência, ó alma tímida, antes de penetrares mais longe em tais domínios inexplorados, dirige os teus passos para trás e não para a frente. Ouve bem o que te digo: dirige os teus passos para trás e não para a frente, como os olhos de um filho que se afasta respeitosamente da contemplação augusta do rosto materno; ou, antes, como a visão ao longe de friorentos grous em grande meditação, que, em tempo de Inverno, voam poderosamente através do silêncio, com todas as velas tensas, para um ponto determinado do horizonte, donde parte repentinamente um vento estranho e forte, precursor da tempestade(...)"


- Lautréamont, Os Cantos de Maldoror,  tradução de Claudio Willer.

quarta-feira, 26 de março de 2014

Gregory Corso - cavalo com leite





CAVALO COM LEITE

Num quarto a colher sobre o fogo
A cozinhar o desejo secreto.
Tudo cozido, ele apanhou um cinto
e correu antes do cavalo derreter.
O cinto foi preso em volta do braço;
a agulha bem limpa para não haver danos
e apertando, apertando, uma veia surgiu.
Com uma puxada o braço começou a doer.
Com mão firme ele esperou inchar -
esperou o sonho que a si orfertava.
E então a agulha avançou plenamente
Mas o cavalo tinha leite, e não deu barato.
Ele foi ao chão sem fazer ruído,
e girou os olhos como um carrossel.
Então se esfregou e sacudiu e puxou os cabelos,
vomitou ar, nada mais do que ar.
No fundo da noite ele rolava e rugia.
Ó alma, você nunca esteve tão chapada neste mundo.
fonte: Gasolina & Lady Vestal, L&PM, 1985

quarta-feira, 5 de março de 2014

Pasolini






A RECESSÃO


Reveremos calças com remendos
vermelhos pores do sol sobre as aldeias
vazias de carros
cheias de pobre gente que terá voltado de Turim ou da Alemanha
Os velhos serão donos de suas muretas como poltronas de senadores
e as crianças saberão que a sopa é pouca e o que significa um pedaço de pão
E a noite será mais negra que o fim do mundo e de noite ouviremos os grilos ou os trovões
e talvez algum jovem entre aqueles poucos que voltaram ao ninho tirará pra fora um bandolim
O ar terá o sabor de trapos molhados
tudo estará longe
trens e ônibus passarão de vez em quando como num sonho
E cidades grandes como mundos estarão cheias de gente que vai a pé
com as roupas cinzas
e dentro dos olhos uma pergunta que não é de dinheiro mas é só de amor
somente de amor
As pequenas fábricas no mais belo de um prado verde
na curva de um rio
no coração de um velho bosque de carvalhos
desabarão um pouco por noite
Mureta por mureta
Teto em chapa por teto em chapa
E as antigas construções
serão como montanhas de pedra
sós e fechadas como eram uma vez
E a noite será mais negra que o fim do mundo
e de noite ouviremos os grilos e os trovões
O ar terá o sabor de trapos molhados
tudo estará longe
trens e ônibus passarão
de vez em quando como num sonho
E os bandidos terão a face de uma vez
Com os cabelos curtos no pescoço
e os olhos de suas mães cheios do negro das noites de lua
e estarão armados só de uma faca
O tamanco do cavalo tocará a terra leve como uma borboleta
e lembrará aquilo que foi o silêncio o mundo
e aquilo que será.


PIER PAOLO PASOLINI
Tradução: Mario S. Mieli

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

André Breton - A União Livre

 

  

A UNIÃO LIVRE

Minha mulher com a cabeleira de fogo de madeira
Com pensamentos de relâmpagos de calor
Com o talhe de ampulheta
Minha mulher com o talhe de lontra entre os dentes do tigre
Minha mulher com a boca de roseta e de buquê de estrelas de última grandeza
Com dentes de rastro de camundongo branco sobre a terra branca
Com a língua de âmbar e de vidro lixados
Minha mulher com a língua de hóstia apunhalada
Com a língua de boneca que abre e fecha os olhos
Com a língua de pedra incrível
Minha mulher com cílios de lápis de escrita de criança
Com sobrancelhas de borda de ninho de andorinha
Minha mulher com têmporas de ardósia de teto de estufa
E com vapor nas vidraças
Minha mulher com ombros de champanhe
E de fonte com cabeças de golfinhos sob o gelo
Minha mulher com punhos de fósforos
Minha mulher com dedos de acaso e de ás de copas
Com dedos de feno ceifado
Minha mulher com axilas de marta e de faia
Da noite de São João
De ligustro de ninho de acarás
Com braços de espuma de mar e de eclusa
E de mistura de trigo e de moinho
Minha mulher com pernas de foguete
Com movimentos de relojoaria e de desespero
Minha mulher com panturrilhas de fibra de sabugueiro
Minha mulher com pés de iniciais
Com pés de chaveiros com pés de pardais que bebem
Minha mulher com pescoço de cevada perolada
Minha mulher com a garganta de Vale d’ouro
De encontros no próprio leito da torrente
Com seios de noite
Com seios de toupeira marinha
Minha mulher com seios de cadinho de rubi
Com seios de espectro de rosa sobre o orvalho
Minha mulher com ventre de desdobra de leque dos dias
Com ventre de garra gigante
Minha mulher com dorso de ave que foge vertical
Com dorso de mercúrio
Com dorso de luz
Com a nuca de pedra rolada e de giz molhado
E de queda de um copo do qual se acaba de beber
Minha mulher com ancas de barquilha
Com ancas de candelabro e de penas de flechas
E de hastes de pluma de pavão branco
De balanço insensível
Minha mulher com nalgas de arenito e de amianto
Minha mulher com nalgas de dorso de cisne
Minha mulher com nalgas de primavera
Com sexo de gladíolo
Minha mulher com sexo de mina aurífera e de ornitorrinco
Minha mulher com sexo d’algas e de bombons antigos
Minha mulher com sexo de espelho
Minha mulher com olhos cheios de lágrimas
Com olhos de panóplia violeta e de agulha imantada
Minha mulher com olhos de savana
Minha mulher com olhos d’água para beber na prisão
Minha mulher com olhos de madeira sempre sob o machado
Com olhos de nível d’água de nível do ar da terra e de fogo