quarta-feira, 23 de abril de 2014

Jorge de Lima, panfletário do caos





Foi no dia 31 de dezembro de 1961 que te compreendi Jorge de Lima
enquanto eu caminhava pelas praças agitadas pela melancolia presente
na minha memória devorada pelo azul
eu soube decifrar os teus jogos noturnos
indisfarçável entre as flores
uníssonos em tua cabeça de prata e plantas ampliadas
como teus olhos crescem na paisagem Jorge de Lima e como tua boca
palpita nos bulevares oxidados pela névoa
uma constelação de cinza esboroa-se na contemplação inconsútil
de tua túnica
e um milhão de vaga-lumes trazendo estranhas tatuagens no ventre
se despedaçam contra os ninhos da Eternidade
é neste momento de fermento e agonia que te invoco grande alucinado
querido e estranho professor do Caos sabendo que teu nome deve
estar como um talismã nos lábios de todos os meninos


Poema de Roberto Piva

quarta-feira, 16 de abril de 2014

MANIFESTO DADAÍSTA de TRISTAN TZARA - 1918

tradução do francês de Ivo Korytowski
A magia de uma palavra —
DADÁ — que levou os
jornalistas às portas
de um mundo inesperado, para nós
não tem a menor importância.

Para lançar um manifesto é preciso querer: A.B.C., fulminar contra 1, 2, 3, se enervar e aguçar suas asas para conquistar e difundir pequenas e grandes a, b, c, assinar, gritar, jurar, organizar a prosa sob uma forma de evidência absoluta, irrefutável, provar seu non-plus-ultra e sustentar que a novidade se assemelha à vida como a última aparição de uma prostituta prova a essência de Deus. Sua existência já foi provada pelo acordeão, a paisagem e palavras doces.■ Impor seu A.B.C. é uma coisa natural — portanto lamentável. Todo mundo o faz sob uma forma de cristalblefemadona, sistema monetário, produto farmacêutico, perna nua convidando à primavera ardente e estéril. O amor à novidade é a cruz simpática, prova de uma atitude ingênua de não-estou-nem-aí, sinal sem causa, passageiro, positivo. Mas essa necessidade está também antiquada. Ao darmos à arte o impulso da suprema simplicidade — novidade — somos humanos e fiéis ao divertimento, impulsivos, vibrantes para crucificar o tédio. Na encruzilhada das luzes, alertas, atentos, espreitando os anos, dentro da floresta.■



Escrevo um manifesto e nada quero, digo porém certas coisas e sou em princípio contra os manifestos, como sou também contra os princípios (decilitros para o valor moral de toda frase — comodidade demais; a aproximação foi inventada pelos impressionistas). ■ Escrevo este manifesto para mostrar que é possível realizar ações contrárias ao mesmo tempo, em um só fôlego fresco; sou contra a ação; quanto à contínua contradição, quanto à afirmação também, não sou a favor nem contra e não me explico porque detesto o bom senso.

DADÁ — eis uma palavra que oferece as ideias à caçada; cada burguês é um pequeno dramaturgo, inventa assuntos diferentes; em vez de colocar os personagens adequados no nível de sua própria inteligência, qual crisálidas em cadeiras, procura as causas ou os propósitos (seguindo o método psicanalítico que ele pratica) a fim de reforçar sua trama, uma história que fala e se define. ■ Cada espectador é um enredador, se tenta explicar uma palavra (conhecer!). Do refúgio acolchoado das complicações serpentinas, é preciso manipular seus instintos. Daí as infelicidades da vida conjugal.

Explicação: Divertimento dos barrigas-vermelhas nos moinhos de crânios vazios.

DADÁ NÃO SIGNIFICA NADA



Se o consideramos fútil e se não queremos perder nosso tempo com uma palavra que não significa nada... O primeiro pensamento que vem a essas cabeças é de ordem bacteriológica: encontrar sua origem etimológica, histórica ou psicológica, pelo menos. Vemos nos jornais que os negros Krou chamam a cauda de uma vaca sagrada: DADÁ. O cubo, e a mãe, em uma certa região da Itália: DADÁ. Um cavalo de madeira, a ama de leite, uma dupla afirmação em russo e em romeno: DADÁ. Jornalistas cultos ali vêem uma arte para os bebês, outros santos Jesuschamandoascriancinhas do dia, a volta a um primitivismo árido e ruidoso, ruidoso e monótono. Não se constrói sobre uma palavra a sensibilidade; toda construção converge para a perfeição que entedia, idéia estagnada de um pântano dourado, produto humano relativo. A obra de arte não deve ser a beleza em si mesma, porque ela está morta; nem alegre nem triste, nem clara nem escura, deleitar ou maltratar as individualidades servindo-lhes os doces de auréolas santas ou os suores de uma corrida ondulante pela atmosfera. Uma obra de arte jamais é bela, por decreto, objetivamente, para todos. A crítica é portanto inútil, ela só existe subjetivamente, para cada um, e sem o menor caráter de generalidade. Acredita-se ter encontrado a base psíquica comum a toda a humanidade? A tentativa de Jesus e a Bíblia ocultam sob suas asas amplas e benevolentes: a merda, os animais, os dias.



Como se pode querer ordenar o caos que constitui essa variação infinita e informe: o homem? O princípio “ama ao teu próximo” é uma hipocrisia. “Conhece a ti mesmo” é uma utopia, mas mais aceitável pois ela contém em si a maldade. Nada de piedade. Resta-nos, após a carnificina, a esperança de uma humanidade purificada. Falo sempre de mim, já que não quero convencer, não tenho o direito de arrastar os outros no meu rio, não obrigo ninguém a me seguir, e todo mundo faz sua arte à sua maneira, se conhece a alegria que sobe qual flecha à esfera astral, ou a que desce às minas floridas de cadáveres e espasmos férteis. Estalactites: procurá-las por toda parte, nos presépios ampliados pela dor, olhos brancos como as lebres de anjos. Assim nasceu DADÁ de uma necessidade de independência, de uma desconfiança em relação à comunidade. Aqueles que pertencem a nós preservam a liberdade. Não reconhecemos nenhuma teoria. Já estamos fartos das academias cubistas e futuristas: laboratórios de idéias formais. Pratica-se a arte para ganhar dinheiro e adular os gentis burgueses? As rimas soam a assonância das moedas, e a inflexão desliza ao longo da linha do ventre de perfil. Todos os grupos de artistas foram parar nesse banco [no sentido de instituição bancária — N. do T.], cavalgando diversos cometas. A porta aberta às possibilidades de se chafurdar nas almofadas e na comida.

Aqui lançamos a âncora à terra fértil.



Aqui temos o direito de proclamar, pois experimentamos os calafrios e o despertar. Espectros ébrios de energia, cravamos o tridente na carne indiferente. Somos jorros de maldições em abundância tropical de vegetações vertiginosas, resina e chuva é nosso suor, nós sangramos e ardemos de sede, nosso sangue é vigor.

O cubismo nasceu da simples forma de olhar o objeto: Cézanne pintou uma taça 20 centímetros mais baixa que seus olhos, os cubistas a vêem do alto, outros complicam a aparência cortando uma seção perpendicular e dispondo-a prudentemente do lado. (Não esqueço os criadores, nem as grandes razões da matéria que eles tornaram definitivas.) O futurista vê a mesma taça em movimento, uma sucessão de objetos um ao lado do outro, ornamentados maliciosamente de algumas linhas de guia. Isto não impede que a tela seja uma boa ou má pintura destinada ao investimento de capitais intelectuais. O pintor novo cria um mundo, cujos elementos também são os meios, uma obra sóbria, definida e irrefutável. O artista novo protesta: ele não pinta mais (reprodução simbólica e ilusionista), mas cria diretamente em pedra, madeira, ferro, estanho, rochas, ou estruturas móveis que podem ser viradas de todos os lados pelo vento límpido da sensação momentânea.■

Toda obra pictórica ou plástica é inútil, ainda que seja um monstro que mete medo aos espíritos servis, e não adocicada para ornar os refeitórios dos animais em trajes humanos, ilustrações desta triste fábula da humanidade. — Um quadro é a arte de fazer duas linhas geometricamente paralelas se encontrarem em uma tela, diante de nossos olhos, na realidade de um mundo transfigurado segundo as novas condições e possibilidades. Esse mundo não é especificado nem definido na obra; ele pertence, em suas inúmeras variações, ao espectador. Para seu criador, ele é sem causa e sem teoria. Ordem = desordem; eu = não eu; afirmação = negação: irradiações supremas de uma arte absoluta. Absoluta na pureza do caos cósmico e ordenado, eterna no glóbulo-segundo sem duração, sem respiração, sem luz, sem controle. Adoro uma obra antiga por sua novidade. Ela é puro contraste que nos liga ao passado. Os escritores que pregam a moral e discutem ou melhoram a base psicológica possuem, além de um desejo secreto de ganhar, um conhecimento ridículo da vida, que eles classificaram, repartiram, canalizaram; eles estão determinados a ver as categorias dançar enquanto marcam o compasso. Seus leitores zombam e continuam: pra quê?



Existe uma literatura que não atinge as massas vorazes. Obra de criadores, produto de uma verdadeira necessidade do autor, e para ele. Consciência de um supremo egoísmo, ou a madeira se estiolando. ■ Cada página deve explodir, seja pela seriedade profunda e pesada, o turbilhão, a vertigem, o novo, o eterno, pelo absurdo desconcertante, pelo entusiasmo dos princípios ou pela forma como está impressa. Eis um mundo vacilante que foge, noivo dos guizos da escala infernal, eis do outro lado: os homens novos. Rudes, saltantes, cavalgantes de soluços. Eis um mundo mutilado e os medicastros literários precisando de aperfeiçoamento.

Eu lhes asseguro: não existe começo e nós não trememos, nós não somos sentimentais. Nós rasgamos, qual vento furioso, a roupa branca das nuvens e das preces, e preparamos o grande espetáculo do desastre, o incêndio, a decomposição. Preparemos a supressão do luto e substituamos as lágrimas por sereias estendidas de um continente ao outro. Pavilhões [no sentido do tubo de instrumento de sopro — N. do T.] de alegria intensa e viúvos da tristeza venenosa. ■ DADÁ é o sinal da abstração; a propaganda e os negócios são também elementos poéticos.

Eu destruo as gavetas do cérebro e aquelas da organização social: desmoralizar por toda parte e jogar a mão do céu no inferno, os olhos do inferno no céu, restabelecer a roda fecunda de um circo individual nos poderes da realidade, e a fantasia de cada indivíduo.

A questão é filosófica: de que ângulo começar a olhar a vida, deus, a idéia, ou seja lá o que for. Tudo que se olha é falso. Não considero o resultado relativo mais importante que escolher entre doces e cerejas na sobremesa. A maneira de olhar rápido o outro lado de uma coisa, para impor indiretamente sua opinião, se chama dialética, ou seja, decidir no cara-ou-coroa sob uma aparência de seriedade. Se eu grito:



Ideal, ideal, ideal
Conhecimento, conhecimento, conhecimento
Bum-bum, Bum-bum, Bum-bum

registrei com precisão o progresso, a lei, a moral e todas as outras belas qualidades que diversas pessoas bem inteligentes discutiram em tantos livros, para enfim dizer que, mesmo assim, cada um dançou segundo seu bum-bum pessoal, e que ele tem razão por seu bum-bum: satisfação da curiosidade doentia; repique de sinos privado por necessidades inexplicáveis; banho; dificuldades pecuniárias; estômago com repercussão sobre a vida; autoridade da batuta mística formulada como a peça final de uma orquestra fantasma de arcos mudos, lubrificados por filtros à base de amoníaco animal. Com o monóculo azul de um anjo eles desenterraram seu interior por vinte centavos de reconhecimento unânime. ■ Se todos têm razão e se todas as pílulas não passam de Pink, tentemos uma vez não ter razão. ■ As pessoas acreditam que podem explicar racionalmente, pelo pensamento, o que escrevem. Mas isto é bem relativo. A psicanálise é uma doença perigosa, amortece os pendores anti-reais do homem e sistematiza a burguesia. Não existe Verdade derradeira. A dialética é uma máquina divertida que nos conduz (de forma banal) a opiniões que teríamos tido de qualquer modo. As pessoas realmente acreditam que, pela sutileza minuciosa da lógica, demonstraram a verdade e estabeleceram a exatidão de suas opiniões? A lógica comprimida pelos sentidos é uma doença orgânica. Os filósofos adoram acrescentar a esse elemento: o poder da observação. Mas justamente esta magnífica qualidade do espírito é a prova de sua impotência. As pessoas observam, olham as coisas de um ou vários pontos de vista, escolhem-nas dentre as milhões que existem. A experiência é também um resultado do acaso e de habilidades individuais. ■ A ciência me revolta do momento em que se torna um sistema especulativo e perde seu caráter utilitário — tão inútil — mas pelo menos individual. Odeio a objetividade viscosa e a harmonia, essa ciência que considera que tudo está em ordem. Continuem, minhas crianças, humanidade... A ciência diz que somos servos da natureza: tudo está em ordem, façam amor tanto quanto a guerra. Continuem, minhas crianças, humanidade, burgueses gentis e jornalistas virgens... ■ Sou contra os sistemas, o sistema mais aceitável é aquele de não ter por princípio nenhum. ■ Completar-se, aperfeiçoar-se em sua própria pequenez até preencher o vaso de seu eu, a coragem de combater a favor e contra o pensamento, mistério do pão arremesso súbito de uma hélice infernal em lírios econômicos:

A ESPONTANEIDADE DADAÍSTA

Chamo de atitude de não-estou-nem-aí quando cada um cuida de sua própria vida, ao mesmo tempo em que sabe respeitar as outras individualidades, e até defender-se, o two-step [tipo de dança de salão — N. do T.] tornando-se hino nacional, bricabraque, T.S.F. telefone sem fio transmitindo fugas de Bach, anúncios luminosos e cartazes para os bordéis, o órgão transmitindo cravos para Deus, tudo isto ao mesmo tempo, e realmente substituindo a fotografia e o catecismo unilateral.

A simplicidade ativa.



A incapacidade de distinguir entre os graus de clareza: lamber a penumbra e flutuar dentro da grande boca repleta de mel e excremento. Medida pela escala da Eternidade, toda ação é vã — (se permitíssemos ao pensamento uma aventura cujo resultado seria infinitamente grotesco — dado importante para o conhecimento da fraqueza humana). Mas se a vida é uma farsa infeliz, sem meta nem parto inicial, e por acreditarmos que devemos, como crisântemos lavados, fazer o melhor da situação, proclamamos como a base única do entendimento: a arte. Ela não tem a importância que nós, escolados no espírito, lhe prodigalizamos por muitos séculos. A arte não prejudica ninguém, e aqueles capazes de se interessar por ela recebem carinhos e uma bela chance de povoar o país de sua conversação. A arte é uma coisa privada, o artista a faz para si; uma obra compreensível é o produto de um jornalista, e porque neste momento me agrada misturar este monstro nas pinturas a óleo: um tubo de papel imitando o metal que se pressiona para extrair automaticamente ódio, covardia, vilania. O artista, o poeta se regozija no veneno dessa massa condensada em um chefe de seção dessa indústria, ele fica feliz ao ser insultado: prova de sua imutabilidade. O autor, o artista elogiado pelos jornais constata que sua obra foi compreendida: revestimento miserável de um sobretudo de utilidade pública; farrapos que cobrem a brutalidade, mijo contribuindo para o calor de um animal que incuba os baixos instintos. Carne flácida e insípida se multiplicando com a ajuda dos micróbios tipográficos.

Nós rejeitamos a inclinação chorona em nós. Cada filtração dessa natureza é diarréia macerada. Encorajar essa arte significa digeri-la. Precisamos de obras fortes, diretas, precisas e para sempre incompreendidas. A lógica é uma complicação. A lógica é sempre falsa. Ela puxa os fios das noções e palavras exteriormente formais para alvos e centros ilusórios. Suas cadeias matam, miriápode enorme asfixiando a independência. Casada com a lógica, a arte viveria em incesto, engolindo sua própria cauda, que continua pertencendo ao seu corpo, fornicando consigo mesma, e o temperamento se tornaria um pesadelo feito de protestantismo, um monumento, uma massa de intestinos cinzentos e pesados.

Mas a flexibilidade, o entusiasmo e até a alegria da injustiça, aquela pequena verdade que praticamos inocentes e que nos torna belos: nós somos delgados e nossos dedos são maleáveis e deslizam como os ramos dessa planta insinuante e quase líquida; essa injustiça define a nossa alma, dizem os cínicos. Isto também é um ponto de vista, mas nem todas as flores são santas, felizmente, e o que há de divino em nós é o despertar da ação anti-humana. Trata-se aqui de uma flor de papel para a casa de botão de cavaleiros que freqüentam o baile da vida mascarada, a cozinha da graça, brancas primas [em francês, cozinha (cuisine) e prima (cousine) soam quase iguais — N. do T.] flexíveis ou gordas. Eles traficam com aquilo que selecionamos. Contradição e unidade de pólos opostos ao mesmo tempo podem ser verdade. Caso estejamos absolutamente determinados a pronunciar essa banalidade, apêndice de uma moralidade libidinosa, malcheirosa. A moral atrofia, como todo flagelo produzido pela inteligência. O controle da moral e da lógica nos infligiram a impassibilidade diante dos agentes da polícia — causa da escravidão —, ratos pútridos com os quais os burgueses se empanturraram, e que infectaram os únicos corredores de vidro claros e limpos que restaram abertos aos artistas.

Que cada homem grite: há um grande trabalho destrutivo, negativo, por realizar. Varrer, limpar. A limpeza do indivíduo se afirma após o estado de loucura, de loucura agressiva, completa, de um mundo deixado nas mãos de bandidos que demolem e destroem os séculos. Sem propósito nem plano, sem organização: a loucura indomável, a decomposição. Os fortes pela palavra ou pela força sobrevivem, porque são rápidos na defesa; a agilidade dos membros e dos sentimentos arde sob seus flancos facetados.

A moral deu origem à caridade e piedade, duas bolas de sebo que cresceram como elefantes, planetas, e que as pessoas chamam de boas. Elas não têm nada da bondade. A bondade é lúcida, clara e resoluta, impiedosa para com o compromisso e a política. A moralidade infunde chocolate dentro das veias de todos os homens. Essa tarefa não é ordenada por uma força sobrenatural, mas pelo truste dos mercadores de ideias e açambarcadores universitários. Sentimentalismo: vendo um grupo de homens que discutiam e se enfadavam, eles inventaram o calendário e o remédio sabedoria. Colando rótulos, a batalha dos filósofos se desencadeou (mercantilismo, balanço, medidas meticulosas e mesquinhas), e compreendeu-se mais uma vez que a piedade é um sentimento, como a diarréia em relação ao desgosto que mina a saúde, a tarefa imunda das carniças de comprometer o sol.

Eu proclamo a oposição de todas as faculdades cósmicas a essa blenorragia de um sol pútrido saído das usinas do pensamento filosófico, a luta encarniçada, com todos os meios da

AVERSÃO DADAÍSTA

Todo produto da aversão suscetível de se tornar uma negação da família é dadá; protesto com toda a sua força em ação destrutiva: DADÁ; conhecimento de todos os meios rejeitados até agora pelo sexo pudico do compromisso cômodo e da polidez: DADÁ; abolição da lógica, dança dos incapazes de criação: DADÁ; de toda hierarquia e equação social estabelecidas pelos valores por nossos criados: DADÁ; cada objeto, todos os objetos, os sentimentos e as obscuridades, as aparições e o choque preciso de linhas paralelas, são meios para o combate: DADÁ; abolição da memória: DADÁ; abolição da arqueologia: DADÁ; abolição dos profetas: DADÁ; abolição do futuro: DADÁ; crença absoluta indiscutível em cada deus produto imediato da espontaneidade: DADÁ; salto elegante e sem preconceito de uma harmonia para outra esfera; trajetória de uma palavra atirada como um disco sonoro grito; respeitar todas as individualidades na sua loucura do momento: séria, temerosa, tímida, ardente, vigorosa, decidida ou entusiasmada; despojar sua igreja de todos os acessórios inúteis e pesados; cuspir como uma cascata luminosa o pensamento desagradável ou amoroso, ou acalentá-lo — com a viva satisfação de que tudo é igual — com a mesma intensidade na moita, livre de insetos para o sangue bem-nascido, e dourado com corpos de arcanjos, com sua própria alma. Liberdade: DADÁ DADÁ DADÁ, alarido de dores crispadas, entrelaçamento dos contrários e de todas as contradições, dos grotescos, das inconseqüências: A VIDA.

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Charles Baudelaire - O albatroz

 

 

"L'albatros" / O albatroz: tradução de Guilherme de Almeida



O albatroz

Às vezes, por prazer, os homens de equipagem
Pegam um albatroz, enorme ave marinha,
Que segue, companheiro indolente de viagem,
O navio que sobre os abismos caminha.

Mal o põem no convés por sobre as pranchas rasas,
Esse senhor do azul, sem jeito e envergonhado,
Deixa doridamente as grandes e alvas asas
Como remos cair e arrastar-se a seu lado.

Que sem graça é o viajor alado sem seu nimbo!
Ave tão bela, como está cômica e feia!
Um o irrita chegando ao seu bico em cachimbo,
Outro põe-se a imitar o enfermo que coxeia!

O poeta é semelhante ao príncipe da altura
Que busca a tempestade e ri da flecha no ar;
Exilado no chão, em meio à corja impura,
A asa de gigante impedem-no de andar.

sexta-feira, 4 de abril de 2014

Conde de Lautréamont - Fragmentos



"Eu, como os cães, sinto a necessidade do infinito...Não posso, não posso satisfazer essa necessidade! Sou filho do homem e da mulher, ao que me dizem. Isso me espanta...acreditava ser mais! De resto, que me importa de onde venho? Se dependesse da minha vontade, teria preferido ser antes o filho da fêmea do tubarão, cuja fome é amiga das tempestades, e do tigre, cuja crueldade é reconhecida: eu não seria tão mau”. 

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" Queira o céu que o leitor, tornado audaz e momentaneamente feroz à semelhança do que lê, encontre, sem se desorientar, o seu caminho abrupto e selvagem através dos lodaçais desolados destas páginas sombrias e cheias de veneno; pois que, a não ser que utilize na sua leitura uma lógica rigorosa e uma tensão de espírito pelo menos igual à sua desconfiança, as emanações mortais deste livro irão embeber-lhe a alma, como a água ao açúcar. Não convém que toda a gente leia as páginas que se seguem; só alguns hão-de saborear sem perigo este fruto amargo. Por consequência, ó alma tímida, antes de penetrares mais longe em tais domínios inexplorados, dirige os teus passos para trás e não para a frente. Ouve bem o que te digo: dirige os teus passos para trás e não para a frente, como os olhos de um filho que se afasta respeitosamente da contemplação augusta do rosto materno; ou, antes, como a visão ao longe de friorentos grous em grande meditação, que, em tempo de Inverno, voam poderosamente através do silêncio, com todas as velas tensas, para um ponto determinado do horizonte, donde parte repentinamente um vento estranho e forte, precursor da tempestade(...)"


- Lautréamont, Os Cantos de Maldoror,  tradução de Claudio Willer.